‘Turismo cambial’ vira fonte de lucro na Venezuela e esvazia voos

Passageiros no aeroporto de Caracas (Reuters)
Muitos voos decolam com parte dos assentos vazios
O sistema de controle de câmbio da Venezuela, que desde 2003 limita a compra de moeda estrangeira, está virando uma fonte de lucro para “turistas” que buscam obter dólares para revenda no país.
O “turismo cambial” está gerando situações inusitadas, como voos em que quase todas as passagens foram compradas, mas que acabam partindo do país com até 30% dos assentos vazios – já que muitos, após adquirem dólares destinados apenas a turistas, acabam sequer embarcando.
Devido às restrições em vigor, os venezuelanos não podem comprar moedas de outros países livremente, mas apenas em situações específicas (como uma viagem ao exterior por turismo ou negócios), depois de passar por rigorosos procedimentos burocráticos e respeitando as cotas máximas.
A autorização para compra de moeda estrangeira varia de acordo com o destino e a duração da viagem. Uma parte relativamente pequena do limite autorizado pode ser retirada em dinheiro ainda na Venezuela e o resto poderá ser gasto com o cartão de crédito no exterior.
Desde a imposição deste controle, a diferença entre a taxa de câmbio oficial para os dólares e o preço no mercado negro nunca foi tão grande. É possível vender dólares por um valor que chega a seis vezes o preço oficial, tornando o comércio um negócio muito lucrativo nas ruas do país.

'Raspando' o cartão

Eduardo, que prefere não revelar seu nome verdadeiro, é um engenheiro de Caracas que, quando o controle de câmbio foi imposto, tinha apenas 15 anos.
Há um mês, ele viajou para a Europa com mais duas pessoas a quem ele pagou para que o acompanhasse.
"Eu tratei tudo como uma viagem de negócios. Eu era como o guia (das outras duas pessoas)", afirmou.
Para Eduardo, sobraram dois terços dos dólares que comprou com a cota dos três viajantes. Graças a um contato que tinha na Europa, que hospedou os três a preços baixos, ele também conseguiu trocar o crédito dos três cartões por dólares em papel moeda.
Foram cobrados 10% de comissão para passar o cartão sem comprar nada e gerar um recibo, em uma operação que os venezuelanos chamam de "raspar" o cartão.
Por todo este processo, Eduardo pagou, em bolívares, o equivalente a mais de R$ 52 mil, e, depois de vender os dólares no mercado negro e pagar uma parte aos companheiros de viagem, recebeu o equivalente em bolívares a mais de R$ 147 mil.

'No show'

Não há estatísticas sobre o número de pessoas que está fazendo o mesmo que Eduardo, mas especialistas acreditam que sejam muitos.
E um indício disso está na comparação do mês de julho de 2013 com o mesmo mês em 2012 na Venezuela: houve um aumento de 80% nas vendas de passagens para o exterior, segundo a Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA, na sigla em inglês).
"A enorme diferença entre o dólar oficial e o do mercado negro fez com que as viagens virassem um negócio", disse Humberto Figuera, presidente da Associação de Empresas Aéreas da Venezuela.
Dólares e bolívares (AFP)
Dólar chega a valer seis vezes o preço do câmbio oficial
"Por isso há tanta demanda, e as (passagens) que sobram estão tão caras", disse Figuera à BBC Mundo.
Nas agências de viagens de Caracas, as passagens em voos nos próximos quatro meses para destinos como Lima, no Peru, Quito, no Equador, ou Miami, nos Estados Unidos, estão praticamente esgotadas.
As poucas passagens encontradas, em datas que nem sempre são convenientes, superam US$ 3 mil (cerca de R$ 6,6 mil).
No momento em que a reportagem estava sendo feita, por exemplo, a única passsagem direta disponível entre Caracas e Lima, nos próximos três meses, custava US$ 3.496 (cerca de R$ 7,7 mil) no câmbio oficial.
Além disso, há relatos constantes de voos que estão com todos os assentos vendidos, mas acabam decolando com muitos lugares vazios. É a multiplicação do fenômeno conhecido como na Venezuela como no show ("não comparecimento", em tradução livre do inglês).
"Já se viram voos com mais de 30% de assentos vazios", disse Figuera.

Impressões digitais

Natália, outra venezuelana que prefere usar um nome fictício para proteger sua identidade, viajou para o Peru com a família e eles aproveitaram para "raspar" parte da cota de dólares dos cartões.
Ela passou por uma loja de eletrodomésticos que fazia a operação e por um centro comercial onde "cambistas" com coletes amarelos ofereciam o serviço.
Depois, Natália encontrou no Facebook um lugar que opera como uma agência turística, em um prédio residencial.
"Um venezuelano nos atendeu. Tivemos que esperar duas horas, mas finalmente 'rasparam' nosso cartão de crédito com uns 13% de comissão, e nos deram um recibo de um city tour", disse.
"Me disseram que atendem cerca de 60 pessoas por dia", acrescentou a turista.
Natália afirmou ainda que, quando estava em Lima e dizia que era venezuelana, todos imediatamente a associavam ao negócio do câmbio.
O governo do presidente Nicolás Maduro, que considera esta fraude cambial mais um ataque na "guerra econômica" contra a Venezuela, afirmou que vai instalar um sistema de leitores de impressões digitais nos portões de embarque dos voos, para que apenas os dólares de pessoas que realmente viajam sejam liberados.

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